terça-feira, 27 de junho de 2017

Centro de Internação Provisória- Uma Reflexão Possível

Centro de Internação Provisória- Uma reflexão possível![1]

Renata Craviée Fonseca Mendonça[2]

Resumo: Este artigo visa promover uma reflexão acerca da prática socioeducativa em uma Unidade de Internação Provisória, destinada ao trabalho com adolescentes, autores de ato infracional, entre as idades de doze a dezoito anos. A discussão está pautada pela possibilidade de articulação entre a Psicanálise e o Direito, incluindo vários questionamentos no que concerne a tentativa de retificação dos modos de vida desses jovens, o que caracteriza fundamentalmente o trabalho socioeducativo.

Unitermos: ato infracional, resposta, Outro, agressividade, instituição, subjetividade, Psicanálise, Direito.

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I-  Introdução


Mergulhada na prática do sistema socioeducativo são muitas as questões que nos inquietam e interrogam, dentre elas: a articulação entre Direito e Psicanálise, as questões de segurança, pertinentes no contexto de unidades privativas de liberdade, as questões psíquicas desses sujeitos, autores de atos infracionais, que ocasionalmente se expõem a situações de risco e vulnerabilidade, ainda que inseridos em instituições, de cunho jurídico. Questões relacionadas ao manejo de adolescentes, que além de chegarem pelo fato de serem autores de ato infracional, ainda acumulam um quadro de saúde mental e que, muitas vezes, devido a isso, nos chegam e nos interrogam, constantemente sobre o manejo que a instituição precisa ter perante tais sujeitos.
Essas são apenas algumas das questões relacionadas a essa prática. Sigo escrevendo afim de suscitar o meu desejo na produção de algo que seja extremamente particular do meu modo de subjetivação do trabalho e na busca de afunilar qual o ponto de questão que estarei abordando nesse escrito.
Inicialmente, considero pertinente dizer que trabalhar com esses jovens, autores de ato infracional nos convida a constantes discussões e elaborações técnicas, pensando na necessidade da construção clínica desses casos, afim de identificarmos qual a lógica subjetiva, ou melhor, o modo de funcionamento destes diante de seus impasses.
A partir disso torna-se possível a construção de intervenções na tentativa de promoção de alguma retificação subjetiva possível, isto é, de que aquilo que o adolescente constrói como uma forma de resposta as suas questões de vida, possivelmente aonde se insere o ato infracional, possa ser interrogado e assim possa construir novas formas de lidar com os impasses relativos a  sua existência.
Deste modo, torna-se evidente a complexidade e ao mesmo tempo a sutileza envolvida neste trabalho, uma vez que, são complexas as questões envolvidas. Dentre elas, podemos mencionar as questões familiares, anteriores ao início do envolvimento infracional e os conflitos daí existentes. Histórias de abandono, negligência, uso e abuso de drogas, escassez ou inexistência de condições materiais, que garantam o cumprimento das necessidades mais básicas e elementares da vida, histórias de violência ou abuso sexual, psicológico, físico, entre tantas outras questões.

II-                            Articulação entre Psicanálise e Direito

Somada a tais questões encontra-se o terreno do Direito que no caso da criança e adolescente é respaldado pelos dispositivos legais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e as diretrizes do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, dentre outros, que norteiam e pautam nosso trabalho com esses jovens.
O que se apresenta como imprescindível, no entanto, é a articulação das questões clínicas dos jovens com o campo do Direito, que é o campo que garante a estes a preservação de todos os procedimentos legais cabíveis e necessários à conclusão do processo jurídico, como o direito do jovem de se manifestar em audiência, ter a presença de um defensor público, ser acompanhado por seus responsáveis legais, entre outros direitos. Sendo importante lembrar que é pela via do Direito que se tem a entrada dos adolescentes no sistema socioeducativo.
Uma questão, no entanto, fundamental, ao campo clínico refere-se a pergunta dos sujeitos: “A que coisas tenho direito?” Neste ponto, fundamental a citação:
“Vê-se que um neurótico pode recusar-se a abandonar as coisas que o impedem de gozar, porque inconscientemente, ele não tem direito a isso. Sabemos que o direito é sempre uma ficção, uma ficção simbólica e que apesar de sê-lo é operativa no mundo, estrutura o mundo. (...) Nas sociedades estruturadas como senhor-escravo, o direito é uma ficção, mas uma ficção operativa, que estrutura o mundo. Assim, quando falamos em castração simbólica, trata-se de direito. (MILLER, 1988)

O que fica claro com a citação é que no que se refere ao campo do gozo, ou seja, a forma como o sujeito inscreve-se no modo de relação com o Outro, as normas e regras, que buscam fazer valer a Lei, por si só, não garantem a forma como o sujeito lidará com as questões referentes ao Direito, podendo barrar ou não às suas satisfações pulsionais.
Sendo importante localizar o campo do gozo como aquele que está mais além do princípio do prazer, ou seja, a possibilidade de obtenção de satisfação no sofrimento. Cabendo neste ponto, as questões estruturais, organizadoras do funcionamento psíquico de cada sujeito. Segundo BARROS (2001, p. 37)  pode-se dizer: “A Lei não garante a ordem, só a crença (internalização) pode assegurá-la, crença na ficção de uma autoridade ordenadora.”
Tal articulação entre a Psicanálise e o Direito pede a sutileza da escuta afim de identificarmos no caso da comprovação da autoria do ato infracional, qual a medida socioeducativa mais apropriada, ou melhor, que possua alcance junto ao jovem na perspectiva de favorecer alguma retificação de seu modo de vida, através da responsabilização do jovem pelo ato praticado. Para isso, é fundamental  assegurar o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, na garantia dos direitos e deveres destes.
Neste sentido, o trabalho pede a articulação entre Psicanálise e Instituição, o que nos convoca a pensar sobre a noção de rede, sobretudo, por estarmos inseridos em um sistema socioeducativo, no qual, convivem, diversos órgãos e discursos, campos de saber. Hoje todos inseridos dentro do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente, a quem se atribua autoria de ato infracional (CIA-BH), ou seja, estamos todos inseridos em uma rede,  que visa o pronto atendimento ao adolescente, por meio da integração operacional de órgãos do Poder Judiciário (Ministério Público e Defensoria Pública) e da Segurança Pública, respeitadas as diretrizes estabelecidas pelos Conselhos Nacional e Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Segundo TENÓRIO (2000), para se pensar a noção de rede é preciso diferenciar uma rede objetiva, burocrática, que mais se aproxima dos aparatos institucionais, que no caso de uma Unidade de Internação Provisória refere-se a oferta mesma do trabalho. E que se refere a todas as funções a que acumula o Estado em relação aos jovens em cumprimento do acautelamento provisório, como Educação, Esporte, Lazer, Saúde, Alimentação, Profissionalização, Cultura, Convivência Familiar e Comunitária. No entanto, além desta, temos a noção de rede subjetiva que se trata do lugar ocupado pelo jovem na transferência a instituição, a rede socioeducativa.
Deste modo, pode-se pensar que a rede subjetiva se inaugura a partir do acolhimento, da escuta inicial, que funda o projeto clínico com o adolescente, ou seja, que inaugura o Plano Individual de Atendimento (PIA) e, deste modo, depende daquele que o recebe, o acolhe em seu momento de crise, ruptura com o laço social.
As crises podem ser fragmentárias, impossíveis, escancaradas e nos apontam o modo extremamente subjetivo dos adolescentes lidarem com os seus impasses. Diante do modo como o sujeito chega e o que apresenta em seus relatos se tem o projeto clínico com o adolescente, isto é, a possibilidade de realização do estudo de caso, que nos orienta em relação a construção do seu PIA, que pode ser pensado enquanto uma orientação de trabalho com cada adolescente.
A recepção é a acolhida desse sujeito, nomeação que surge pelo viés da palavra, escuta do que o sujeito traz como dele e que diz de seus modos de vida, para que dali se faça um laço para o cumprimento da medida socioeducativa. É na ponta da urgência, ou seja, no momento de chegada desse sujeito ao sistema que se dá a possibilidade, abertura para tal.
Podemos pensar que então a recepção do adolescente em conflito com a Lei, ou seja, sua acolhida, em uma Unidade de Internação Provisória não é apenas uma triagem, no sentido, de uma escolha de qual adolescente será possível um investimento de trabalho, mas sim um lugar de retificação, de reinvenção do trabalho socioeducativo, direcionado a partir do caminho apontado pelo adolescente.
Para pensarmos a clínica da recepção, proposta por TENÓRIO (2000) e  que para nós equivale a fase de acolhimento dos adolescentes, não se pode desconsiderar a clínica da urgência, sobretudo, quando se fala de uma Unidade de Internação Provisória, na qual, há a suspensão do destino desses jovens, pela condição da “não-resposta”, do momento de se aguardar uma decisão judicial frente ao ato infracional, o que os coloca em uma posição de não-saber frente aos seus destinos. A prática nos mostra é que diante disso há uma agitação e inquietação, que nos é perceptível e nos coloca a trabalho, a todo momento.
No entanto, apesar da urgência e da necessidade de invenção constante de intervenções diante da agitação dos jovens, não se pode desconsiderar a necessidade de que a subjetividade possa circular nesse espaço, no qual, a Psicanálise em sua interface com o campo do Direito, em suas articulações possa permitir que as intervenções no caso-a-caso tenham lugar, apesar da existência do trabalho institucional, que pede a abordagem do grupo de jovens.
O Ato clínico da recepção, ou seja, sua acolhida pode ser pensado como uma intervenção que muda a entrada do adolescente na instituição a partir do momento em que se questiona as respostas do sujeito e a sua demanda constante ao Outro como forma de resolução de seus próprios impasses. E para tal, podemos localizá-lo enquanto um ato analítico:
Segundo MILLER (2008, p. 22):

(...) “ O ato analítico é liberar a associação, isto é, a palavra, liberá-la do que a limita, para que ela se desenvolva numa rota livre. Constatamos então que a palavra em rota livre faz voltar as lembranças, que ela remete o passado ao presente e que ela desenha, a partir daí, um futuro.”

Interessante se pensar que se por um lado o trabalho institucional se realiza em um espaço coletivo, no qual, há a convivência de um número elevado de adolescentes, por outro, será exatamente nos espaços ofertados para estes como o espaço da escola, atendimentos, oficinas profissionalizantes, oficinas de conversação, entre outros que nos permitirá o acesso ao campo da subjetividade, momentos propícios para as intervenções no sentido de provocar questionamentos ao modo de resposta encontrados por cada um em seus encontros com a vida e com seus impasses.
Neste sentido, torna-se importante que haja lugar no espaço institucional para que as subjetividades possam aparecer, o que talvez caiba algum manejo dos espaços pré-estabelecidos do campo institucional, pois o sujeito, muitas vezes, a seu modo rompe com o estabelecido e se apresenta com toda a sua particularidade. Isso fica claro ao percebermos que por mais que haja as regras e normas institucionais que regulam o espaço de convivência desses jovens há sempre o modo criado por estes para lidarem com seus impasses, sendo a agressividade e a violência uma forma comum entre estes jovens.

III- Agressividade- Uma forma eleita pelos jovens em sua relação com o Outro

Questão importante ao abordarmos a temática da agressividade e violência é pensarmos na particularidade contida nessa forma de resposta, uma vez que, segundo LACAN em “Agressividade em Psicanálise” (1948, p. 105), em sua Tese I: “A agressividade se manifesta numa experiência que é subjetiva por sua própria constituição”.
O que se quer dizer é que na própria constituição subjetiva do Eu, perceberemos que não é apenas o amor que permite a  sua fundação, mas também o ódio. É a partir da identificação ao Outro que constituo a minha própria imagem, mas ao mesmo tempo em que o Eu se vê capturado por uma imagem, a mesma é invasiva e buscamos nos desvencilhar desta, o que provoca a tensão. Interessante, portanto, que há sempre na agressividade uma questão identificativa em jogo e uma tentativa de tratamento, separação da imagem a qual nos identificamos.
Retomar os princípios dos mais básicos a que apregoa a Psicanálise de que estamos todos mergulhados no campo simbólico nos convida a pensar que os sujeitos buscam tratar por esta via, ou seja, pela via da palavra seus conflitos. Segundo FREUD (1930), os conflitos se apresentam sempre na relação com o Outro, o meio e o próprio corpo, sendo o campo das relações com os outros sempre aquele que afigura maiores tensões. No entanto, a partir do ensino de Lacan talvez tenha ficado ainda mais claro que o modo como o sujeito irá se relacionar com o outro dependerá, sempre de sua constituição enquanto um sujeito. Importante, no entanto, percebermos que o ato infracional se localiza exatamente no ponto em que houve uma falência do dispositivo simbólico, ou seja, aonde a palavra faltou.
Sendo assim, para se pensar o fenômeno da violência e da agressividade é preciso fazê-lo, levando-se em conta a estrutura psíquica de cada sujeito, o seu modo de relação com o outro e com o seu próprio gozo, que, por sua vez, refere-se a como lida com o seu sofrimento. Tais questões obviamente não anulam a importância das questões sociais que também favorecem o entendimento da violência.
Para que possamos esboçar alguma conclusão da reflexão aqui produzida busco aproximar a complexidade do trabalho socioeducativo a tese III de Lacan em seu texto: “A Agressividade em Psicanálise” (1948, p. 109) dos  Escritos: “Os impulsos de agressividade decidem sobre as razões que motivam a técnica da análise”. Obviamente que não se quer dizer com isso que a solução para todos os males está na possibilidade do sujeito vir-a-ser um analisando, mas que o diálogo em si parece constituir uma renúncia a agressividade.
Deste modo, a Psicanálise aplicada, inserida dentro do contexto de uma Unidade de Internação Provisória, nos auxilia a partir da produção de seus efeitos terapêuticos, obtidos quando o foco passa a ser a posição de objeto que o sujeito assume em sua relação com o Outro e na possibilidade de vir-a-ser um sujeito, protagonista de sua história.







IV-Referências Bibliográficas

                  ALBERTI, Sonia. Neurose e Psicose. Parte II. Esse Sujeito Adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999.


              ALBERTI, Sonia. Do Ego Adolescente ao Eu do Sujeito. Parte III. Esse Sujeito Adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999.

                BARROS, Fernanda Otoni. Contando Causo. Psicanálise e Direito: A Clínica em Extensão. Unicentro Newton Paiva: 2001, 172P.


               BARROS. Fernanda Otoni. Do Direito ao Pai. Coleção Escritos em Psicanálise e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, Vol 2, 144P.


              FREUD, Sigmund. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Vol 21: O Mal Estar na Civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago (1927-1931). p. 67-148.

   LACAN, Jacques.  Escritos: Agressividade em Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1948, P. 104-126.

   MACHADO, Ondina Maria Rodrigues, GROVA, Tatiane. Psicanálise na Favela, Projeto Digaí- Maré: A Clínica dos Grupos. Rio de Janeiro, 2008, P. 44-50.
 MILLER, Jacques-Alain. Diagnóstico Psicanalítico e Localização Subjetiva. Falo, Revista Brasileira do Campo Freudiano. Nº 02, Jan-Jun, 1988, P. 97-115.

 MILLER, Jacques-Alain. Coisas de Fineza em Psicanálise. Orientação Lacaniana III, 11, 19 de Novembro de 2008.

TENÓRIO, Fernando, OLIVEIRA, Raquel, LEVCOVITZ, Sérgio. A Importância Estratégica dos Dispositivos de Recepção.  Cadernos IPUB, Vol VI, Nº17, 2000, UFRJ, P. 07-14.



[1]              Artigo produzido por Renata Craviée Fonseca Mendonça, psicóloga, especialista em Psicanálise, diretora de atendimento do Centro de Internação Provisória São Benedito da Secretaria de Estado de Defesa Social.
[2]              Psicóloga graduada pelo Unicentro Newton Paiva em 2003, especialista em Psicanálise pela PUC-MG.

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