Centro de Internação Provisória- Uma reflexão possível![1]
Renata Craviée Fonseca
Mendonça[2]
Resumo: Este artigo visa promover uma reflexão acerca
da prática socioeducativa em uma Unidade de Internação Provisória, destinada ao
trabalho com adolescentes, autores de ato infracional, entre as idades de doze
a dezoito anos. A discussão está pautada pela possibilidade de articulação
entre a Psicanálise e o Direito, incluindo vários questionamentos no que
concerne a tentativa de retificação dos modos de vida desses jovens, o que
caracteriza fundamentalmente o trabalho socioeducativo.
Unitermos: ato infracional, resposta, Outro,
agressividade, instituição, subjetividade, Psicanálise, Direito.
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I- Introdução
Mergulhada na prática do sistema socioeducativo são muitas as questões
que nos inquietam e interrogam, dentre elas: a articulação entre Direito e
Psicanálise, as questões de segurança, pertinentes no contexto de unidades
privativas de liberdade, as questões psíquicas desses sujeitos, autores de atos
infracionais, que ocasionalmente se expõem a situações de risco e
vulnerabilidade, ainda que inseridos em instituições, de cunho jurídico.
Questões relacionadas ao manejo de adolescentes, que além de chegarem pelo fato
de serem autores de ato infracional, ainda acumulam um quadro de saúde mental e
que, muitas vezes, devido a isso, nos chegam e nos interrogam, constantemente
sobre o manejo que a instituição precisa ter perante tais sujeitos.
Essas são apenas algumas das questões relacionadas a essa prática. Sigo
escrevendo afim de suscitar o meu desejo na produção de algo que seja
extremamente particular do meu modo de subjetivação do trabalho e na busca de
afunilar qual o ponto de questão que estarei abordando nesse escrito.
Inicialmente, considero pertinente dizer que trabalhar com esses jovens,
autores de ato infracional nos convida a constantes discussões e elaborações
técnicas, pensando na necessidade da construção clínica desses casos, afim de
identificarmos qual a lógica subjetiva, ou melhor, o modo de funcionamento
destes diante de seus impasses.
A partir disso torna-se possível a construção de intervenções na
tentativa de promoção de alguma retificação subjetiva possível, isto é, de que
aquilo que o adolescente constrói como uma forma de resposta as suas questões
de vida, possivelmente aonde se insere o ato infracional, possa ser interrogado
e assim possa construir novas formas de lidar com os impasses relativos a sua existência.
Deste modo, torna-se evidente a complexidade e ao mesmo tempo a sutileza
envolvida neste trabalho, uma vez que, são complexas as questões envolvidas.
Dentre elas, podemos mencionar as questões familiares, anteriores ao início do
envolvimento infracional e os conflitos daí existentes. Histórias de abandono,
negligência, uso e abuso de drogas, escassez ou inexistência de condições
materiais, que garantam o cumprimento das necessidades mais básicas e
elementares da vida, histórias de violência ou abuso sexual, psicológico,
físico, entre tantas outras questões.
II-
Articulação
entre Psicanálise e Direito
Somada a tais questões encontra-se o terreno do Direito que no caso da
criança e adolescente é respaldado pelos dispositivos legais, como o Estatuto
da Criança e do Adolescente e as diretrizes do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo, dentre outros, que norteiam e pautam nosso trabalho com esses
jovens.
O que se apresenta como imprescindível, no entanto, é a articulação das
questões clínicas dos jovens com o campo do Direito, que é o campo que garante
a estes a preservação de todos os procedimentos legais cabíveis e necessários à
conclusão do processo jurídico, como o direito do jovem de se manifestar em
audiência, ter a presença de um defensor público, ser acompanhado por seus
responsáveis legais, entre outros direitos. Sendo importante lembrar que é pela
via do Direito que se tem a entrada dos adolescentes no sistema socioeducativo.
Uma questão, no entanto, fundamental, ao campo clínico refere-se a pergunta
dos sujeitos: “A que coisas tenho
direito?” Neste ponto, fundamental a citação:
“Vê-se que um neurótico pode recusar-se
a abandonar as coisas que o impedem de gozar, porque inconscientemente, ele não
tem direito a isso. Sabemos que o direito é sempre uma ficção, uma ficção
simbólica e que apesar de sê-lo é operativa no mundo, estrutura o mundo. (...)
Nas sociedades estruturadas como senhor-escravo, o direito é uma ficção, mas
uma ficção operativa, que estrutura o mundo. Assim, quando falamos em castração
simbólica, trata-se de direito. (MILLER, 1988)
O que fica claro com a citação é que no que se refere ao campo do gozo,
ou seja, a forma como o sujeito inscreve-se no modo de relação com o Outro, as
normas e regras, que buscam fazer valer a Lei, por si só, não garantem a forma como o sujeito lidará com as questões referentes ao
Direito, podendo barrar ou não às suas satisfações pulsionais.
Sendo importante localizar o campo do gozo como aquele que está mais além
do princípio do prazer, ou seja, a possibilidade de obtenção de satisfação no
sofrimento. Cabendo neste ponto, as questões estruturais, organizadoras do
funcionamento psíquico de cada sujeito. Segundo BARROS (2001, p. 37) pode-se dizer: “A Lei não garante a ordem, só a crença (internalização) pode
assegurá-la, crença na ficção de uma autoridade ordenadora.”
Tal articulação entre a Psicanálise e o Direito pede a sutileza da escuta
afim de identificarmos no caso da comprovação da autoria do ato infracional,
qual a medida socioeducativa mais apropriada, ou melhor, que possua alcance
junto ao jovem na perspectiva de favorecer alguma retificação de seu modo de
vida, através da responsabilização do jovem pelo ato praticado. Para isso, é
fundamental assegurar o cumprimento do
Estatuto da Criança e do Adolescente, na garantia dos direitos e deveres
destes.
Neste sentido, o trabalho pede a articulação entre Psicanálise e
Instituição, o que nos convoca a pensar sobre a noção de rede, sobretudo, por
estarmos inseridos em um sistema socioeducativo, no qual, convivem, diversos
órgãos e discursos, campos de saber. Hoje todos inseridos dentro do Centro
Integrado de Atendimento ao Adolescente, a quem se atribua autoria de ato
infracional (CIA-BH), ou seja, estamos todos inseridos em uma rede, que visa o pronto atendimento ao adolescente,
por meio da integração operacional de órgãos do Poder Judiciário (Ministério
Público e Defensoria Pública) e da Segurança Pública, respeitadas as diretrizes
estabelecidas pelos Conselhos Nacional e Estadual dos Direitos da Criança e do
Adolescente.
Segundo TENÓRIO (2000), para se pensar a noção de rede é preciso
diferenciar uma rede objetiva, burocrática, que mais se aproxima dos aparatos
institucionais, que no caso de uma Unidade de Internação Provisória refere-se a
oferta mesma do trabalho. E que se refere a todas as funções a que acumula o
Estado em relação aos jovens em cumprimento do acautelamento provisório, como
Educação, Esporte, Lazer, Saúde, Alimentação, Profissionalização, Cultura,
Convivência Familiar e Comunitária. No entanto, além desta, temos a noção de
rede subjetiva que se trata do lugar ocupado pelo jovem na transferência a
instituição, a rede socioeducativa.
Deste modo, pode-se pensar que a rede subjetiva se inaugura a partir do
acolhimento, da escuta inicial, que funda o projeto clínico com o adolescente,
ou seja, que inaugura o Plano Individual de Atendimento (PIA) e, deste modo,
depende daquele que o recebe, o acolhe em seu momento de crise, ruptura com o
laço social.
As crises podem ser fragmentárias, impossíveis, escancaradas e nos
apontam o modo extremamente subjetivo dos adolescentes lidarem com os seus
impasses. Diante do modo como o sujeito chega e o que apresenta em seus relatos
se tem o projeto clínico com o adolescente, isto é, a possibilidade de realização
do estudo de caso, que nos orienta em relação a construção do seu PIA, que pode
ser pensado enquanto uma orientação de trabalho com cada adolescente.
A recepção é a acolhida desse sujeito, nomeação que surge pelo viés da
palavra, escuta do que o sujeito traz como dele e que diz de seus modos de
vida, para que dali se faça um laço para o cumprimento da medida
socioeducativa. É na ponta da urgência, ou seja, no momento de chegada desse
sujeito ao sistema que se dá a possibilidade, abertura para tal.
Podemos pensar que então a recepção do adolescente em conflito com a Lei,
ou seja, sua acolhida, em uma Unidade de Internação Provisória não é apenas uma
triagem, no sentido, de uma escolha de qual adolescente será possível um
investimento de trabalho, mas sim um lugar de retificação, de reinvenção do
trabalho socioeducativo, direcionado a partir do caminho apontado pelo
adolescente.
Para pensarmos a clínica da recepção, proposta por TENÓRIO (2000) e que para nós equivale a fase de acolhimento
dos adolescentes, não se pode desconsiderar a clínica da urgência, sobretudo,
quando se fala de uma Unidade de Internação Provisória, na qual, há a suspensão
do destino desses jovens, pela condição da “não-resposta”,
do momento de se aguardar uma decisão judicial frente ao ato infracional, o que
os coloca em uma posição de não-saber
frente aos seus destinos. A prática nos mostra é que diante disso há uma
agitação e inquietação, que nos é perceptível e nos coloca a trabalho, a todo
momento.
No entanto, apesar da urgência e da necessidade de invenção constante de
intervenções diante da agitação dos jovens, não se pode desconsiderar a
necessidade de que a subjetividade possa circular nesse espaço, no qual, a
Psicanálise em sua interface com o campo do Direito, em suas articulações possa
permitir que as intervenções no caso-a-caso tenham lugar, apesar da existência
do trabalho institucional, que pede a abordagem do grupo de jovens.
O Ato clínico da recepção, ou seja, sua acolhida pode ser pensado como
uma intervenção que muda a entrada do adolescente na instituição a partir do
momento em que se questiona as respostas do sujeito e a sua demanda constante
ao Outro como forma de resolução de seus próprios impasses. E para tal, podemos
localizá-lo enquanto um ato analítico:
Segundo MILLER (2008, p. 22):
(...)
“ O ato analítico é liberar a associação,
isto é, a palavra, liberá-la do que a limita, para que ela se desenvolva numa
rota livre. Constatamos então que a palavra em rota livre faz voltar as
lembranças, que ela remete o passado ao presente e que ela desenha, a partir
daí, um futuro.”
Interessante se pensar que se por um lado o trabalho institucional se
realiza em um espaço coletivo, no qual, há a convivência de um número elevado
de adolescentes, por outro, será exatamente nos espaços ofertados para estes
como o espaço da escola, atendimentos, oficinas profissionalizantes, oficinas
de conversação, entre outros que nos permitirá o acesso ao campo da
subjetividade, momentos propícios para as intervenções no sentido de provocar
questionamentos ao modo de resposta encontrados por cada um em seus encontros
com a vida e com seus impasses.
Neste sentido, torna-se importante que haja lugar no espaço institucional
para que as subjetividades possam aparecer, o que talvez caiba algum manejo dos
espaços pré-estabelecidos do campo institucional, pois o sujeito, muitas vezes,
a seu modo rompe com o estabelecido e se apresenta com toda a sua
particularidade. Isso fica claro ao percebermos que por mais que haja as regras
e normas institucionais que regulam o espaço de convivência desses jovens há
sempre o modo criado por estes para lidarem com seus impasses, sendo a
agressividade e a violência uma forma comum entre estes jovens.
III- Agressividade- Uma forma
eleita pelos jovens em sua relação com o Outro
Questão importante ao abordarmos a temática da agressividade e violência
é pensarmos na particularidade contida nessa forma de resposta, uma vez que,
segundo LACAN em “Agressividade em Psicanálise” (1948, p. 105), em sua Tese I: “A agressividade se manifesta numa
experiência que é subjetiva por sua própria constituição”.
O que se quer dizer é que na própria constituição subjetiva do Eu,
perceberemos que não é apenas o amor que permite a sua fundação, mas também o ódio. É a partir
da identificação ao Outro que constituo a minha própria imagem, mas ao mesmo
tempo em que o Eu se vê capturado por uma imagem, a mesma é invasiva e buscamos
nos desvencilhar desta, o que provoca a tensão. Interessante, portanto, que há
sempre na agressividade uma questão identificativa em jogo e uma tentativa de
tratamento, separação da imagem a qual nos identificamos.
Retomar os princípios dos mais básicos a que apregoa a Psicanálise de que
estamos todos mergulhados no campo simbólico nos convida a pensar que os sujeitos
buscam tratar por esta via, ou seja, pela via da palavra seus conflitos.
Segundo FREUD (1930), os conflitos se apresentam sempre na relação com o Outro,
o meio e o próprio corpo, sendo o campo das relações com os outros sempre
aquele que afigura maiores tensões. No entanto, a partir do ensino de Lacan
talvez tenha ficado ainda mais claro que o modo como o sujeito irá se
relacionar com o outro dependerá, sempre de sua constituição enquanto um
sujeito. Importante, no entanto, percebermos que o ato infracional se localiza
exatamente no ponto em que houve uma falência do dispositivo simbólico, ou
seja, aonde a palavra faltou.
Sendo assim, para se pensar o fenômeno da violência e da agressividade é
preciso fazê-lo, levando-se em conta a estrutura psíquica de cada sujeito, o
seu modo de relação com o outro e com o seu próprio gozo, que, por sua vez,
refere-se a como lida com o seu sofrimento. Tais questões obviamente não anulam
a importância das questões sociais que também favorecem o entendimento da violência.
Para que possamos esboçar alguma conclusão da reflexão aqui produzida
busco aproximar a complexidade do trabalho socioeducativo a tese III de Lacan
em seu texto: “A Agressividade em
Psicanálise” (1948, p. 109) dos Escritos: “Os impulsos de agressividade
decidem sobre as razões que motivam a técnica da análise”. Obviamente que
não se quer dizer com isso que a solução para todos os males está na
possibilidade do sujeito vir-a-ser um analisando, mas que o diálogo em si
parece constituir uma renúncia a agressividade.
Deste modo, a Psicanálise aplicada, inserida dentro do contexto de uma
Unidade de Internação Provisória, nos auxilia a partir da produção de seus
efeitos terapêuticos, obtidos quando o foco passa a ser a posição de objeto que
o sujeito assume em sua relação com o Outro e na possibilidade de vir-a-ser um
sujeito, protagonista de sua história.
IV-Referências Bibliográficas
ALBERTI, Sonia.
Neurose e Psicose. Parte II. Esse Sujeito Adolescente. Rio de Janeiro:
Rios Ambiciosos, 1999.
ALBERTI, Sonia. Do
Ego Adolescente ao Eu do Sujeito. Parte
III. Esse Sujeito Adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999.
BARROS, Fernanda
Otoni. Contando Causo. Psicanálise e Direito: A Clínica em Extensão.
Unicentro Newton Paiva: 2001, 172P.
BARROS. Fernanda
Otoni. Do Direito ao Pai. Coleção Escritos em Psicanálise e Direito.
Belo Horizonte: Del Rey, 2001, Vol 2, 144P.
LACAN, Jacques. Escritos:
Agressividade em Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1948, P.
104-126.
MACHADO, Ondina Maria Rodrigues,
GROVA, Tatiane. Psicanálise na Favela, Projeto Digaí- Maré: A Clínica dos
Grupos. Rio de Janeiro, 2008, P. 44-50.
MILLER, Jacques-Alain. Diagnóstico
Psicanalítico e Localização Subjetiva. Falo,
Revista Brasileira do Campo Freudiano. Nº 02, Jan-Jun, 1988, P. 97-115.
MILLER, Jacques-Alain. Coisas
de Fineza em Psicanálise. Orientação Lacaniana III, 11, 19 de Novembro de
2008.
TENÓRIO, Fernando, OLIVEIRA, Raquel, LEVCOVITZ, Sérgio. A Importância
Estratégica dos Dispositivos de Recepção.
Cadernos IPUB, Vol VI, Nº17,
2000, UFRJ, P. 07-14.
[1] Artigo produzido por Renata
Craviée Fonseca Mendonça, psicóloga, especialista em Psicanálise, diretora de
atendimento do Centro de Internação Provisória São Benedito da Secretaria de
Estado de Defesa Social.
[2] Psicóloga graduada pelo Unicentro
Newton Paiva em 2003, especialista em Psicanálise pela PUC-MG.
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