terça-feira, 27 de junho de 2017

Neurose ou Psicose- Questão de Escolha?

                                                            Neurose ou Psicose
                                                    Questão de Escolha?[1]
Renata Craviée Fonseca[2]
                            
Resumo:Iniciaremos a descrição e estudo de um dado caso clínico, com o objetivo de promover uma tentativa de compreensão teórica acerca da possibilidade de existência de um comprometimento neurológico, associado a quadro psicopatológico. E além disso, favorecer a análise do discurso do sujeito, modo de resposta profundamente peculiar, encontrado pelo mesmo para lidar com suas questões.

Unitermos: Discurso do brincar, sintoma, inibição, alterações funcionais, transferência, diagnóstico, desejo, angústia, simbolização, romance familiar.


I- História Pessoal

Trata-se de uma criança, a que denominaremos Pedro, oito anos de idade que chega à clínica em 2003, encaminhado pela escola com a seguinte queixa: excessivo grau de ansiedade, rejeição à escrita e ao aprendizado formal, muito embora tenha aprendido a ler sozinho e revele facilidade frente às atividades verbais, algo que gosta de demonstrar. Tal queixa já evidenciando a dificuldade de manejo da criança no ambiente escolar.
Revelando dificuldade em concretizar as atividades iniciadas e desinteresse até mesmo por atividades lúdicas como colorir, pintar, recortar e brincar. Apresentando também dificuldade para alimentar-se (uso de vitaminas) e alergia. Evidenciou dificuldade na adaptação escolar, época em que surgiu alergia e sinusite (tendo sua mãe lhe retirado da escola visando reduzir o conflito).
É importante considerar que o quadro de ansiedade foi percebido precocemente, quando a criança estava com um ou dois anos.
   
 Sobre sua história de vida, sabe-se que sua mãe casou-se grávida dele, tendo a gravidez transcorrido sem intercorrências. A criança foi amamentada por um mês e meio, época em que o leite secou. Fez uso de mamadeira e bico até um ano, tendo largado sozinho. Apresentou dificuldade de adaptar-se ao sal, o que se mantém até hoje. Proveniente de família católica. A criança, sua irmã de quatro anos e seus pais residem com os avós maternos. Extremamente apegado aos avós, dormindo até pouco tempo entre eles. Mãe do paciente não trabalha fora, vive para os filhos, segundo ela mesma. Pai da criança é comerciário, bastante ausente, tendo o avô, de certo modo, assumido a função paterna, sendo importante figura de vinculação para a criança. O avô trabalha com representação de cola e sabe-se que a família não possui facilidade financeira.

II- Avaliação Psicodiagnóstica e Neuropsicológica


Segundo os relatórios, realizados na clínica, a criança revela bom potencial de inteligência (melhor desempenho das funções verbais), porém prejuízo das funções executivas. Dificuldade em sustentar a atenção em apenas um estímulo, o que acarreta no comportamento bastante disperso. Sugere comprometimento da memória recente, sendo mais fácil recuperar dados da memória retrógrada. Avaliado através do Wisc III, a criança evidencia possibilidade de existência de comprometimento nas áreas de associação parieto-têmporo-occipital do hemisfério cerebral direito, já que é capaz de ter o reconhecimento semântico, mas dificuldade relativa à interpretação e processamento sintático. As funções visio-espaciais, visio-construtivas, análise e síntese, raciocínio numérico, escrita e cognição social encontram-se especialmente comprometidas, funções atribuídas às regiões parieto-têmporo-occipital do hemisfério direito e esquerdo.
Prejuízos relativos à atenção seletiva, a flexibilidade cognitiva, controle inibitório, função motora, sequenciamento lógico, organização do pensamento, memória operacional e perseverações sugerem danos nas regiões do córtex pré-frontal e frontal.
Apresenta dominância manual direita e hemisfério dominante esquerdo, aquele relacionado à linguagem. Avaliando de modo global, a criança evidencia alterações funcionais significativas, tanto atribuíveis ao hemisfério direito, quanto ao hemisfério esquerdo. Além disso, pode-se levantar como hipótese a existência de falha na associação entre ambos os hemisférios, algo a nível do corpo caloso. Importante considerar que, após essa avaliação, a criança foi encaminhada à Neurologia, sem sucesso, uma vez que sua mãe não se dispôs a isso. No entanto, para a realização de um diagnóstico funcional preciso seria fundamental que a criança se submetesse a uma ressonância magnética ou Spect Cerebral.

III- Atendimento Terapêutico


 A criança encontra-se em atendimento com a terapeuta desde Set/04 sendo possível perceber agitação, dificuldade de interação com outras crianças, falas repetitivas (fala uma frase e logo mais a repete- verbigeração), ansiedade, movimentos de rotação dos membros superiores e cochichos sussurrados, sem a presença de interlocutor e sem propósito aparente, e que ao serem abordados (questionados) são interrompidos ou negados pelo paciente, retornado este para a brincadeira do grupo, porém de modo superficial.
Revela um discurso com conteúdo de grandeza ("Tenho um milhão de brinquedos, brinco com todos eles" -sic), pouca espontaneidade no brincar, incômodo com ruídos ocorridos fora da sala, que lhe chamam a atenção (Pr. corre sempre para a janela para ver o que está acontecendo). Além disso, mostra-se bastante estabanado ao movimentar-se e ao manusear os objetos. A criança encontra-se também em atendimento de Psicomotricidade, atualmente avaliada para possível transferência para o setor de Terapia Ocupacional.[3]
Em discussão clínica com a equipe responsável pelo atendimento de Pedro, optamos pela realização de avaliação pedagógica no intuito de inseri-lo também no setor, complementando o plano de reabilitação, dado o quadro descrito.
     Inicialmente a criança foi atendida em grupo, período em que, aproximava-se de diferentes crianças, demonstrando interesse em participar de diversas atividades como desenho livre, jogos de conhecimento, brincadeiras como fazenda ou casinha, entre outras. No entanto, revelava já dificuldade em ater-se a qualquer uma das atividades escolhidas por ele mesmo, pulando de um grupo a outro ou buscando a atenção da terapeuta, à qual dirigia perguntas transferenciais ou verbalizava sobre seus "ganhos" ("Tenho três bicicletas, ganhei X jogos"-sic, etc)  ou questionava sobre os ganhos da terapeuta.
     Considerando o quadro clínico atual, tentou-se a mudança da criança para o atendimento individual, no qual permaneceu algumas semanas. Neste evidencia intensa dificuldade em aderir ao setting terapêutico com a questão do tempo, questionando variadas vezes ao longo das sessões as horas e quanto tempo falta para acabar a sessão, além de intensa ansiedade.
Tendo em vista a possibilidade de sério comprometimento neurológico, que podemos levantar como uma justificativa parcial para as suas limitações, torna-se fundamental insistir no contato com os pais da criança, visando conseguir a avaliação neurológica necessária.[4]Para assim, contando com o recurso da plasticidade cerebral possuirmos mais elementos que contribuam para a sua reabilitação.
No entanto, a abordagem psicanalítica nos convida à escuta desse sujeito que, ainda que possua limitações neurológicas, constrói um discurso para lidar com suas questões. Imprescindível é a realização de diagnóstico diferencial para a condução clínica de Pedro. Este deverá ser buscado no registro simbólico, onde   são   articuladas
as questões fundamentais do sujeito (sobre o sexo, a morte, a procriação, a paternidade) quando da travessia do Complexo de Édipo: a inscrição do Nome-do-Pai no Outro da linguagem tem por efeito a produção da significação fálica, permitindo ao sujeito inscrever-se na partilha dos sexos.
Nesse sentido, iniciaremos a análise do discurso de Pedro, visando investigar a forma eleita pelo mesmo para lidar com a castração. Para tanto, fundamental se torna mergulharmos no universo infantil com suas brincadeiras e fantasias.
Paciente demonstra afeição pelo personagem do Batman, a quem se refere como seu personagem preferido, gosta de assistir a filmes e desenhos de super-heróis e geralmente verbaliza sobre a cena que lhe chama atenção, imitando-a corporalmente, mas evidencia dificuldade em relatar os acontecimentos de modo global, a história do filme, fixando-se em um fato ou cena. Interessante seria observar atentamente qual a cena que reproduz , ou seja, em que ponto encontra-se fixado.
Ao brincar, utiliza nomes diferentes e difíceis para seus personagens (sugerindo interferência da linguagem dos adultos ou mesmo da mídia), mas suas brincadeiras são pouco espontâneas e a criança perde o interesse com facilidade. Elemento diagnóstico diferencial importante é sabermos se o paciente inventa nomes (neologismos), o que seria claramente indicativo de psicose, ou se os copia, sendo, a imitação, sugestiva do processo de identificação. Neste caso é importante localizar se trata-se de uma identificação puramente imaginária, i (a),  típica da psicose ou se esta identificação imaginária, i(a), se atrela a identificação simbólica ao Outro, I (A), herdeira do Complexo de Édipo, o que fala a favor da estrutura neurótica. A segunda opção parece estar mais de acordo com o paciente.
No que se refere à função paterna, interessa saber se esta foi transmitida. Sabemos que tal função é transmitida pela palavra da mãe, que é responsável em inserir o pai na relação mãe-filho.  Porém, entre o que a mãe transmite e o que a criança capta pode haver grande distância. No caso de Pedro, o que se observou através dos atendimentos é que este busca na cultura e na mídia elementos da função paterna, com os quais se identificar. Ou seja, podemos pensar que de algum modo esta  função opera a partir da cultura, ainda que a figura do pai tenha falhado. Aqui os personagens como o Batman, o Shrek, o Airton Sena e mesmo seu pai “ausente” ou seu avô dividem tal função. Interessante, no entanto, que elege o personagem Batman, como preferido, sendo que este é imortal, ou seja, podemos pensar que este é o pai que retorna.
Neste sentido, podemos começar a levantar alguns elementos para pensarmos em seu diagnóstico. Na neurose, temos o pai simbólico, ou seja, o pai morto, mas que retorna, enquanto simbólico. Pedro desenha, certa vez, o Batman, e escreve: “Batman-o homem morcego das trevas”, ou seja, o personagem sugere ser o homem, que ao mesmo tempo que é imortal se presentifica nas trevas. E dentre os competidores de Fórmula 1, elege aquele que morreu tragicamente como seu ídolo. Menciona o Airton Sena, relatando: “É o amor da minha vida” (sic). Isso nos permite pensar que a figura do Airton Sena faz também uma suplência à figura do pai, que é vivido como ausente, na medida em que o amor é a ele endereçado, ou seja, ama o pai na figura do Airton Sena.
Paciente cita diferentes linhas de ônibus, bairros, relata querer mudar-se para o bairro da clínica, mas que sua mãe não quer por ser muito perigoso. Presta atenção na favela, próxima da clínica, e verbaliza temer que assassinem seu pai. Evidencia, portanto, noção de perigo, presta “atenção” à favela. O temor do assassinato do pai, pode desvelar um pequeno Édipo, ou seja, o desejo inconsciente de morte desse pai. Pedro nos sugere, portanto, que adora um Mestre, no entanto, para poder morrer.
Em uma determinada sessão, paciente relata ser o aniversário de sua mãe. Com alguma dificuldade, faz um desenho o representando e o colore com pouco cuidado. Não se inclui no aniversário e nem mesmo a irmã. Relata que não poderá participar, porque tem de fazer dever. Inicialmente relata que iria entregá-lo à sua mãe, mas acaba deixando com a terapeuta. Com isso, podemos observar então que a criança revela que não há lugar para ela na vida dessa mãe, uma vez que o aniversário é uma data de vida. Não há lugar para ele em seu desejo. Acaba colocando, através da transferência, a terapeuta no lugar de mãe, entregando para esta seu desenho.
As entrevistas realizadas com sua mãe incomodaram intensamente a criança, que batia na porta, com força, querendo entrar. Em um outro momento, o levantamento da possibilidade, junto à criança, de comunicação da terapeuta com sua mãe provocaram nela grande receio, tendo sido motivo para que se retirasse da sessão, convidando a mãe a ir embora, com grande urgência. Tal situação evidencia o desejo da criança, de entrar aonde a sua mãe está, no entanto, sendo o cerne da questão, causa grande angústia ao ser tocado.
A criança parece profundamente abandonada por seu casal de pais, no entanto, encontra interessante saída, uma vez que busca na cultura às funções, das quais se acha carente. Em seu romance familiar, sua mãe falta e seu pai não parece ter sido suficiente para a transmissão da função paterna. Daí o apego de Pedro ao poder dos super-heróis, ou seja, ao falo. Chega às sessões pedindo à terapeuta que anote o nome dos personagens de filmes de super-heróis tais como “Power Rangers”, “Liga da Justiça- Paraíso Perdido”, “Os Cavaleiros do Zodíaco”, aos quais assistiu e seus poderes. Questionado como era a história dos filmes, paciente encena determinada situação de luta, mas evidencia dificuldade em subjetivá-la, apenas a encena e descreve, restritamente.
Segundo KAPLAN & SADOC (1999), avaliando a criança dentro dos parâmetros da psicopatologia infantil sabe-se que esta se apresenta clinicamente significativa quando há existência de transtorno em uma ou mais das seguintes áreas: comportamento manifesto, estados emocionais, relacionamentos interpessoais e função cognitiva. As anormalidades devem ter duração e gravidade suficiente para causarem prejuízo funcional nas áreas escolar (rendimento e comportamento na escola), relacionamentos interpessoais, uso do tempo livre e desenvolvimento de um senso de self e identidade.
Desse modo, o quadro clínico de Pedro nos sugere a presença de prejuízos na área escolar, o que justificou o encaminhamento do mesmo para realização de avaliação, dado o quadro de intensa ansiedade, agitação, dificuldade de atenção e baixo rendimento, observados no ambiente escolar e busca da família pela escolaridade especial e atendimento clínico especializado, que nos apontam para a existência do incômodo da família com os sintomas da criança.
No que se refere à habilidade da criança em estabelecer laços sociais observa-se dificuldade da mesma em voltar-se aos demais para o compartilhamento de interesses. Mantém-se ainda apegado aos próprios interesses, o que dificulta em alguns momentos a aceitação do enquadre terapêutico, principalmente no que se refere ao tempo.
Parece que a criança também se interroga sobre sua estrutura, uma vez, que o significante “doido”, “doente mental”, surge em seu mundo fantasmático, dado as constantes avaliações e atendimentos em uma clínica de saúde mental, ao qual se acha submetido. Se identifica como louco e ao mesmo tempo se interroga disso: “Eu não sou doente mental!” (sic)
Relevante se torna considerarmos que crianças com transtornos e incapacidades neurológicas encontram-se inseridos no grupo de risco para psicopatologia em geral. Sabe-se também que variados fatores ambientais familiares, tais como estilos de criação, interação familiar, têm sido associados com diferentes tipos de psicopatologia e que, portanto, pedem intervenções terapêuticas específicas, tal como o manejo da família, tentando evitar o reforço ao comportamento da criança.
 Pensando na constelação familiar de Pedro, bem como na sua forma de organização, pode-se levantar a hipótese de que há uma questão com o aspecto da separação, uma vez que permanecem inseridos no contexto da família nuclear materna, o que prejudica na questão da referência familiar. A mãe da criança, por sua vez, se apresenta apenas enquanto mãe, não desenvolvendo outras atividades, ou seja, não faltando à criança. Não faltando à criança, torna-se mais difícil à entrada do pai.
Transtornos emocionais podem ser expressos na forma de relacionamentos ausentes ou desviantes com o grupo de iguais. No presente caso, é possível observar clara dificuldade do paciente em interagir com o seu grupo de iguais. Há constantes tentativas da criança de aproximação, no entanto, o predomínio de fantasias, bem como o descuido com os interesses do outro, prejudicam o compartilhamento de interesses. No entanto, é possível observar que a criança faz laço social, encontra-se inserida na linguagem. Freud (1917), nos afirma:

“Na atividade da fantasia, os seres humanos continuam a gozar da sensação de serem livres da compulsão externa, à qual há muito tempo renunciaram, na realidade. Idearam uma forma de alternar entre permanecer um animal que busca o prazer, e ser, igualmente uma criatura dotada de razão. Na verdade os homens não podem subsistir com a escassa satisfação que podem obter da realidade”.

Em uma dada sessão, paciente nos explicita isso claramente. Solicita o Jogo de Botão e escala os jogadores, localizando o número e o nome dos mesmos, fazendo menção aos anos de 1970 e 1984. (escala corretamente os jogadores dessas épocas) Joga com grande entusiasmo e “atenção[5]”, comemorando, inclusive, seus gols. Interessante que fazia movimentos rotatórios com os membros superiores, parecidos com àqueles até então considerados sem propósito aparente, ou seja, surgem agora com algum significado, no caso, de comemoração. Nesta direção, podemos considerar que há distinção entre a realidade interna e o mundo externo, paciente demonstra capacidade em diferenciar o “Eu” do “outro”, ao escalar os jogadores e os localizar no tempo.
Apesar disso, são evidentes os amplos prejuízos funcionais da criança, no entanto, é fundamental que tentemos lançar um olhar diferenciado para o sintoma, uma vez que sabemos que ele pode representar uma construção simbólica, um modo muito particular de resposta aos ideais das potências tutelares do amor, ou seja, daqueles que produzem a criança, antes mesmo de sua concepção, seus genitores, ou mesmo aqueles, os quais elege. Tais questões nos incitam a pensar nos modos de resposta da criança a essa encruzilhada que lhe é imposta por sua condição- responder ao ideal e manter-se na alienação ou na afânise ou fazer furos neste ideal, mantendo sua condição de sujeito.
Pedro parece evidenciar relação ao desejo do Outro ao solicitar a sua mãe que não conte ao avô que não adaptou-se ao atendimento individual, retornando para o atendimento de grupo.  O que nos sugere que se, por um lado, preocupa-se em atender as demandas do avô, por outro insiste em sustentar sua posição, seu incômodo produzido pelo atendimento individual, que parecia estar se configurando como invasivo, ameaçador. Não ficou clara, no entanto, a questão, uma vez que, adere ao atendimento individual por algum tempo (apesar da ansiedade prevalente) e, posteriormente recusa o corte com os “colegas” (sic).  Isso ocorre quando transferido para atendimento de grupo foi tentada nova mudança para o atendimento individual. Talvez possamos pensar que, a mudança, o novo, o corte, ou seja, a transmissão do corte da castração tenham se evidenciado com a presente situação.
Paciente responde a tentativa de mudança com grande angústia. Vai até a sala abraçado com sua mãe, chorando, relatando querer continuar com seus “melhores amigos” (sic), recusando, inclusive, o atendimento daquela semana. A mãe da criança mostra-se incomodada e ao mesmo tempo surpresa com a reação da criança, no entanto, relata que a mudança é sempre difícil para ele.
Dois aspectos podem também ser levantados com a questão do atendimento individual estar se configurando como ameaçador. Primeiramente pode-se pensar que ficar sozinho com a terapeuta equivale a ficar sozinho com a mãe, o que reativa suas fantasias inconscientes de desejos edípicos. E além disso, a insistência de Pedro pelo atendimento de grupo nos sugere a capacidade do mesmo em desenvolver laço social, uma vez que se apega aos coleguinhas. Referindo-se à neurose, Freud (1917) nos esclarece: “As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva”.
O que se observa é que Pedro realmente se vê confrontado com o Ideal do Eu, que inclui a figura do seu avô, em especial, mas também de todos aqueles que depositam expectativas na criança. Mas, por outro lado, paciente demonstra estar mantendo sua posição de sujeito, muito embora esteja pagando um preço muito alto. Ser sujeito aqui equivale a ser “doido” na família.
Podemos pensar que, diante da angústia de castração a criança responde com a inibição e o sintoma. Pedro reconhece as palavras, ou seja, está inserido na linguagem, mas a inibição do pensamento, somada ao sintoma: “Não posso aprender” impedem o deslizamento significante, os processos de metáfora e metonímia, comuns na estrutura neurótica, o que nos levou à dúvida diagnóstica, ao levantamento da possibilidade de uma psicose. Ou seja, da “loucura”, interrogação, feita pelo próprio paciente. Freud (1917), assim define o sintoma:

“(...) os sintomas psíquicos (ou psicogênicos) e de doença psíquica são atos prejudiciais, ou, pelo menos, inúteis à vida da pessoa, que por vez, deles se queixa como sendo indesejados e causadores de desprazer ou sofrimento; podendo resultar em extraordinário empobrecimento da pessoa no que se refere à energia mental que lhe permanece disponível e, com isso, na paralisação da pessoa para todas as tarefas importantes da vida”.

Sabe-se que pensando na saúde da criança espera-se que ela possa fazer sempre “bons encontros”. Bons encontros com o real da castração. No entanto, o presente estudo nos aponta a presença de trauma, sugerindo-nos que a transmissão da castração foi desastrosa. Paciente inclui o corte da castração o tempo todo. Não permanece nem em ato e nem em pensamento em coisa alguma, imprimindo o corte em tudo o que faz. Podemos então pensar que há uma posição de gozo, que insiste em aparecer. O questionamento constante que Pedro faz das horas durante as sessões evidencia seu desejo de permanecer ali apenas um pouco, reproduzindo, sua forma de resposta à castração.[6] Momento, portanto, oportuno ao uso do tempo lógico, favorecendo ao paciente se haver com o seu modo de gozo, para daí extrairmos seu desejo. Segundo Freud (1917):

 “(...) as experiências infantis exigem uma consideração especial. Elas determinam as mais importantes conseqüências, porque ocorrem numa época de desenvolvimento incompleto e, por essa mesma razão, são capazes de ter efeitos traumáticos”.

A neurose da criança é uma construção, algo que se evidencia como resposta à transmissão da castração. As fantasias inconscientes invadem o “eu” fazendo com que se renuncie, pela via da inibição, a algumas funções. Freud (1976), assinala que algumas inibições representam o abandono de uma função, porque sua prática produziria ansiedade. Se pudermos tomar o prejuízo das funções executivas de Pedro como uma inibição, teremos mais um argumento a favor da neurose. Para Freud (1926), a inibição é a restrição normal de uma função.
Aspecto essencial no atendimento à criança é a questão do brincar porque é um espaço no qual se cria um mundo de fantasias, através do qual expressa-se a sua realidade interna. A clínica se constitui a partir do discurso infantil que se faz acompanhar pelo ato do brincar. Porém, fabulações ideativas, muito presentes, neste contexto, podem dificultar o entendimento da verdadeira relação que a criança mantém com o que ela diz, ou seja, se é capaz de perceber a separação entre o mundo externo e a sua realidade psíquica, ou não. Esta é uma descoberta fundamental para se firmar um diagnóstico. Freud (1924), nos esclarece: “(...) a neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la”.
 Segundo WINNICOTT, citado por GEISSMANN (1993:P.325):
“O que distingue de uma atividade lúdica normal é a ausência de um começo e fim no brinquedo, a importância do controle mágico, a ausência da organização do material do brinquedo segundo um esquema, seja qual for, e o caráter incansável que a criança revela nessa atividade”.

No presente caso, observa-se que Pedro mantém, no ato do brincar, pouca espontaneidade e envolvimento. Mantém um discurso de grandeza e apego aos poderes dos super-heróis. Mas se formos observar, atentamente, os heróis escolhidos, veremos a presença de posições não tão grandiosas, como é o caso do Shrek, que segundo Pedro estava na lama. (Paciente em uma das sessões escreve: “Shrek tava lama”).
Questionado em seu discurso de grandeza, paciente se constrange, mas na sessão seguinte evidencia ter sido tocado, de algum modo, e traz já no início do atendimento uma resposta ao questionamento da terapeuta: “O que você não tem?”, Relatou que não tem uma profissão. Sendo então pontuado para a criança, a diferença desta para o mundo dos adultos.
Além da função de simbolização ou representação que o brincar oferece à criança, visto que, existe uma necessidade de elaboração mental das experiências vividas, podemos dizer que algo da ordem do desejo imprime-se ao brincar infantil. Sendo o sujeito psicótico excluído do processo que funda a lei e produz o desejo, podemos pensar que o discurso do sujeito psicótico não é dele próprio, isto é, ele mesmo não tem possibilidade de colocar-se na posição de sujeito do seu discurso. Como conseqüência, tal sujeito não poderá de forma alguma assumir que existe incoerência ou contradição em seu discurso, porque somente a passagem pelo recalque, próprio dos neuróticos, o permitiria fazer.
A ambivalência, fenômeno psicopatológico que pode apresentar-se nos quadros psicóticos, ilustra perfeitamente a contradição do discurso psicótico, sem que o sujeito possa reconhecê-la.
Posteriormente à ameaça do corte entre a criança e os demais do grupo (pela tentativa de retorno para o atendimento individual), houve um apaziguamento do paciente, sendo possível perceber, inclusive, maior espontaneidade na sessão. Pedro brinca com uma boneca, relata que está grávida, mas que fumou muito durante toda a gravidez, inclusive na hora do parto. Encena o filho nascendo e verbaliza que este nasceu morto. Repete a cena, várias vezes, até o “final feliz” (sic), quando a criança sobrevive. Questionado se a mãe queria ter a criança, paciente relata que sim.
Em seguida repete a estória através de um desenho. Desenha a mulher grávida, sangue e o filho (Relata que a mulher estava grávida, saiu sangue e o filho morreu. Em seguida relata que o menino nasceu). Questionado sobre o desenho, relata não ser nada (parecendo não querer falar à respeito) e desenha um cometa e uma bola. Questionado sobre a relação entre os desenhos, responde que o menino chutou a bola no telhado e que lá no céu havia um cometa. Sendo que tal relação aparenta ter sido realizada devido à sugestão da terapeuta. A negação da criança em falar mais sobre o assunto nos aponta a posição neurótica de nada querer saber sobre as questões referentes ao desejo, uma vez que se encontram sob a barra do recalque, no entanto, retornam através das fantasias inconscientes. E a transferência aparece sob a forma de resistência, a partir dos questionamentos constantes sobre a terapeuta.
A sessão descrita pode nos conduzir a pensar que há capacidade da criança em simbolizar. Há presença da divisão do sujeito, não ficando claro ainda qual a relação que Pedro estabelece entre o dito, que vem do campo do Outro, através do significante “Doido”, que o determina e o seu dizer, uma vez que censura suas produções.
Interessante também observar que houve considerável redução de falas repetitivas, movimentos, aparentemente sem propósito e do comportamento disperso (que nos chamava a atenção). Paciente demonstrou nas últimas sessões maior capacidade para interagir com outras crianças e menor preocupação com o término da sessão. Tais aspectos podendo ser indicativos de que a criança possui habilidades, talvez inibidas.
No caso de Pedro existiam elementos que nos apontavam para a hipótese de uma psicose uma vez que há grande prejuízo na capacidade de subjetivação e seu discurso parecia guardar grande influência do discurso do Outro (Outro Mídia, Outro avô), sugerindo que paciente não se apropriava do seu dizer. Mas, o que pôde se observar com o decorrer dos atendimentos foi uma confusão entre o dito e o dizer, ou seja, entre àquilo que vêm do campo do Outro e aquilo que pertence ao sujeito.  Além disso, a evolução do tratamento teve efeitos no comportamento de Pedro que aliados à redução dos sintomas, observados em alguns momentos, nos sugere a presença real de inibição, o que é comum na estrutura neurótica.
 Nesse caso, a clínica se configura abrindo possibilidade ao paciente de deslocar seus sintomas, encontrando formas mais sadias, que produzam menos limitações à sua vida. A posição do sujeito frente ao modo de satisfação pulsional (posição do sujeito frente ao gozo do Outro) nos oferta pistas para o estabelecimento de um diagnóstico que vai além da estrutura clínica para atingir o tipo clínico.
A cena do nascimento proposta pela criança através do lúdico nos aponta o encontro de Pedro com o real do parto. Paciente repete a cena traumática e nos aponta sua divisão questionando se está vivo ou morto no desejo do Outro. Ao reencontrar-se com a castração, através da brincadeira, ressignifica a experiência, no entanto, relança seu desejo (através do “final feliz”, no qual a criança sobrevive). O que significa que, em detrimento da suposta ausência de desejo dessa mãe, ele se relança, ele insiste em sobreviver, enquanto um sujeito.
A escuta desse pequeno sujeito nos permitiu, portanto, concluirmos pela estrutura neurótica. E além disso, avançarmos para o tipo clínico que, no presente caso, nos aponta para a neurose obsessiva. Interessante que Freud (1917) refere-se a ela como uma doença louca:

“(...) os impulsos, dos quais o paciente se apercebe em si próprio, também podem causar uma impressão de puerilidade e falta de sentido; via de regra, porém, têm um conteúdo da mais assustadora categoria, tentando-o, por exemplo, a cometer graves crimes, de modo que não só os rechaça como alheios a si, mas deles foge com horror e se resguarda de executa-los recorrendo a proibições, renúncias e restrições em sua liberdade”.

Chegando ao diagnóstico abre-se a investigação no sentido de quais são as possibilidades desse sujeito a serem trabalhadas na análise. Segundo Freud (1917), existe uma coisa apenas que se pode fazer:

“(...) realizar deslocamentos, trocas, pode substituir uma idéia absurda por outra um pouco mais atenuada, em vez de um cerimonial pode realizar um outro... a situação inteira termina em um grau sempre crescente de indecisão, perda da energia e restrição da liberdade. Ao mesmo tempo, o neurótico obsessivo inicia seus empreendimentos com uma disposição de grande energia, freqüentemente é muito voluntarioso e, via de regra, tem dotes intelectuais acima da média. Geralmente atingiu um nível de desenvolvimento ético satisfatoriamente elevado; mostra-se superconsciencioso, e tem uma correção fora do comum em seu comportamento”.

Nesse sentido, fundamental ao analista é a tentativa de exploração da habilidade de ressignificar suas experiências, tentando revê-las, ou seja, buscando deslocar seus sintomas para formas menos incapacitantes à vida do sujeito. Pedro evidencia possuir tal capacidade ao relançar seu desejo de manter-se na posição de sujeito, escapando da alienação, que vêm lhe sendo imposta. Os rituais obsessivos correspondem às fantasias, que podem, no entanto, ser abordadas através da interpretação.
Abre-se, com isso, a importância de constante estudo, visando contribuir à caminhada do analisante...


 

 

 

 










REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CIRINO, Oscar. Psicanálise e Psiquiatria com Crianças: Desenvolvimento ou Estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. 143p.
FERREIRA, Tânia. A Escrita da Clínica: Psicanálise com Crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. As Estruturas Clínicas. P. 47- 84.
----------------------- A Escrita da Clínica: Psicanálise com Crianças. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. O Brincar e sua Função na Estrutura. P.85-99.
FREUD, Sigmund. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise- Parte III (1916-1917). Rio de Janeiro: Imago, 1917. P.265-279: O Sentido dos Sintomas (Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 16)
----------------------. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise- Parte III (1916-1917). Rio de Janeiro: Imago, 1917. P.361-378: Os Caminhos da Formação dos Sintomas (Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 16)
----------------------. O Ego e o Id (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago, 1923. P.187-193: Neurose e Psicose (Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19)
-----------------------. O Ego e o Id (1923-1925). Rio de Janeiro: Imago, 1924. P.229-234: A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose (Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19)
----------------------. Um Estudo Autobiográfico; Inibição, Sintoma e Ansiedade; A Questão da Análise Leiga e Outros Trabalhos (1925-1926). Rio de Janeiro: Imago, 1936. P.81-99: Inibições, Sintomas e Ansiedade (Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 20)

GEISSMANN, Pierre & Claudine. A Criança e sua Psicose. Trad. José de Souza e Melo Werneck. São Paulo: Casa do Psicólogo. 1993. Os Médicos, os Pais, a Sociedade podem evitar a Psicose da Criança?. P.317-333.
KAPLAN & SADOC. Tratado de Psiquiatria. Porto Alegre: Artmed, 1999. Cap. 33 Psiquiatria Infantil. P.2345-2355.
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QUINET, Antônio. As 4+1 Condições da Análise. Rio de Janeiro: Jze Editora, 1991. Funções das Entrevistas Preliminares. P.17-38.
VIDAL, Maria Cristina Vecino. Direção da Cura- Psicanálise com Criança e Adolescente. Revista da Letra Freudiana. Rio de Janeiro. Ano X-  Nº 9. Questões sobre o Brincar. P. 43-49.




[1] Artigo apresentado à Pós-Graduação em Psicologia Médica pela UFMG/ 2º Semestre de 2005.
[2] Psicóloga pelo Unicentro Newton Paiva, Pós-graduanda em Psicologia Médica.
[3] Dado a suspeita de gravidade do comprometimento psicomotor.
[4] Atualmente estamos buscando tal contato.
[5] Neste momento, não foi percebida a dificuldade em sustentar sua atenção no presente estímulo.
[6] Paciente repete a tentativa constante do corte quando solicita interromper a sessão.

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